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NÚCLEO MEMÓRIA

Direitos humanos |   A estratégia por trás de tantos ataques às mulheres jornalistas

O deputado estadual Douglas Garcia (Republicanos) agride a jornalista Vera Magalhães (TV Cultura) em debate de candidatos ao governo de São Paulo Imagem: Reprodução/Redes Sociais

O vídeo circulou amplamente nas redes sociais e em grupos de WhatsApp. Nele, um deputado estadual de São Paulo mira a câmera do celular para uma jornalista e a agride verbalmente, em franca intimidação. Você é uma vergonha para o jornalismo brasileiro, ele repete, histriônico, reproduzindo os berros dados pelo presidente da República, duas semanas antes, ao vivo, no debate presidencial transmitido pela Band.

A mesma frase, aliás, ao lado de um retrato da jornalista, pôde ser lida numa faixa durante manifestação do Sete de Setembro.

A jornalista também liga a câmera de seu celular para registrar as agressões de que é vítima. Ambos, deputado e jornalista, estão nos estúdios da TV Cultura, em São Paulo, ao fim de um debate entre candidatos a governador promovido na noite de terça-feira (13) pela emissora, pelo portal UOL e pelo jornal Folha de S.Paulo.

O parlamentar é Douglas Garcia (Republicanos), aliado de Jair Bolsonaro e colega de partido do ex-ministro Tarcísio de Freitas, hoje na disputa pelo governo paulista. Em 2018, Douglas foi o mais jovem deputado estadual eleito em São Paulo, aos 24 anos. A jornalista é Vera Magalhães, colunista do jornal O Globo e âncora do programa Roda Viva.

No vídeo, o político a acusa de receber um salário de R$ 500 mil por ano, boato negado anteriormente pelo canal e pela profissional, que divulgaram o holerite e expuseram o contracheque de R$ 22 mil mensais da contratada.

O hipotético pivô da ofensa é uma idiotice sem tamanho. Qualquer cidadão minimamente bem-informado sabe que há salários muito maiores do que meio milhão por ano na televisão brasileira. E deveria saber, se a comunicação pública fosse um tema levado a sério neste país, que a TV Cultura é uma emissora gerida por uma fundação de direito privado, custeada por dotações orçamentárias legalmente estabelecidas e também por recursos obtidos junto a empresas, como expresso no site da emissora, o que confere a seus empregados uma condição bastante diversa da dos servidores públicos, sujeitos ao teto do funcionalismo.

Neste sentido, o jovem Douglas poderia caçar o que fazer e ir investigar a renda de alguns militares lotados no primeiro e no segundo escalão do Governo Federal. Ou investigar se certos servidores públicos prevaricaram ou corromperam para adquirir certos imóveis, comprados em dinheiro vivo, supostamente não compatíveis com sua renda.

Mas há uma segunda camada, bem mais relevante, na agressão feita pelo deputado bolsonarista - e tarcisista - à âncora da TV Cultura. E isso o vídeo não mostra. O que incomoda o agressor não é tanto o salário pago à jornalista quanto o trabalho que ela desempenha. Seu crime é praticar alguns dos princípios elementares do jornalismo, como a liberdade de imprensa, a disciplina da verificação e a vigilância do andar de cima. O jornalismo deve ser um monitor independente do poder, escreveram os teóricos Bill Kovach e Tom Rosenstiel. Ao fazer jornalismo, incomodamos, e isso é imperdoável.

O outro crime de Vera Magalhães é ser mulher e, ainda assim, ousar o exercício do jornalismo, sem se curvar ao jornalismo áulico, chapa-branca e conivente de certos canais que atuam como assessorias de imprensa do capitão-candidato. Nas redes sociais e nas fileiras de oposição, não faltou quem avivasse a lembrança de uma Vera Magalhães fã de Sérgio Moro e afinada com o antipetismo, capaz de, num passado muito recente, afirmar que Lula não tem apreço pela democracia e pelas instituições, pedir a cabeça de Guilherme Boulos, chamado por ela de bandido, quando convidado para ser colunista da Folha, ou acusar o ex-presidente de fazer comício no velório da ex-primeira-dama Marisa Letícia, como se aquela não tivesse sido uma morte profundamente política, de uma figura política, casada com um político, num período de profunda politização de tudo.

Nada disso importa realmente diante da gravidade das investidas misóginas que se voltam contra a jornalista, disparadas das altas instâncias do poder, de instituições que deveriam zelar pela democracia e pelo bem-estar dos cidadãos, e não o contrário. Para certos cidadãos de bem, que andam em bando e estão cada vez mais fora do armário, muitos deles armados, é inadmissível que uma mulher pense, quanto mais que ela aja, levante a cabeça e se disponha a enfrentar aqueles que a oprimem.

O gesto de Douglas Garcia é, sobretudo, um gesto de opressão, só interrompido no momento em que o diretor de redação da TV Cultura, Leão Serva, tirou-lhe o celular das mãos. Mais do que isso: um gesto de intimidação. Sua mise-en-scène busca intimidar uma profissional da imprensa com o objetivo de calar sua voz. Não apenas a dela, mas também a de seus pares.

Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo, a primeira a denunciar o cartel de empresas privadas que financiavam uma rede dedicada à distribuição ilegal de informações falsas para beneficiar Jair Bolsonaro na campanha eleitoral de 2018, convive desde então com as intimidações e as ofensas do presidente e seus correligionários. Miriam Leitão, duramente torturada pela ditadura militar, foi reiteradas vezes vítima de ironia, ofensa e descredibilização por parte do presidente e de um de seus filhos, o deputado Eduardo.

Vai pra ponta da praia, ironizou Bolsonaro ao repercutir uma pergunta feita a ele por Renata Vasconcellos, durante sabatina do Jornal Nacional, em agosto, utilizando uma expressão que, no jargão dos militares dos anos 1970, significa mandar alguém para a tortura. Mais recentemente, espinafrou a jornalista Amanda Klein, da Jovem Pan, após ouvir dela uma questão contundente sobre a compra de mais de cinquenta imóveis com dinheiro vivo. Seu marido vota em mim, disparou, como se puxasse as orelhas da jornalista por transmitir independência e a orientasse a seguir, calada, as opiniões e determinações do marido.

 lógica dos políticos que agridem jornalistas não é muito diferente da lógica que move os assassinos de Bruno e Dom, o assassino de Moa do Katendê, os assassinos de Marielle Franco e Anderson Gomes, os assassinos de Marcelo Arruda e Benedito Cardoso dos Santos - apoiadores de Lula mortos por apoiadores de Bolsonaro, o primeiro a tiros em sua festa de aniversário, no Paraná, e o segundo a golpes de faca e machado, no Mato Grosso.

Em que reside essa lógica? Em intimidar, em ameaçar todos aqueles que viriam a exercer o mesmo tipo de militância e a impor a mesma espécie de resistência, em dar uma lição, em mostrar que não estamos brincando, não mexa comigo. No caso das mulheres jornalistas, seu condão é fazer com que outras jornalistas - e outros jornalistas - se sintam amedrontados, acossados, até pararem de investigar, de denunciar, de fazer jornalismo.

Agride-se, persegue-se, fere-se e mata-se para dar recado, da mesma forma que um recado pode induzir à morte. Quando um presidente-candidato propõe fuzilar a petralhada ou extirpar da vida pública certo tipo de gente, ele dá um recado a seus apoiadores, cada vez mais radicalizados (e armados). É esse tipo de gente, esse tipo de governante e de apoiador, que precisa deixar a vida pública. A cassação do deputado Douglas Garcia pela Alesp pode ser um bom ponto de partida.

fonte: Camilo Vannuchi - UOL

 

 


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