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NÚCLEO MEMÓRIA

Direitos humanos |   Por dentro do maior centro de tortura da ditadura, prestes a ser escavado

Sala de interrogatório do antigo DOI-Codi, centro de tortura localizado na rua Tutóia, em São Paulo, durante a ditadura militar - Imagem: Camilo Vannuchi/UOL

Criada meses após o AI-5 como um centro clandestino de tortura, e por isso sem dotação orçamentária específica, a Operação Bandeirante (Oban) foi instalada atrás de uma delegacia de polícia, num terreno doado pelo ex-prefeito biônico Paulo Maluf, e equipada com recursos do empresariado paulista no primeiro ano de atividade.

Gente como o dinamarquês Henning Boilesen, diretor da Ultragás, que angariava doações para bancar as equipes que se alternavam no local e os equipamentos usados na caça aos terroristas, como eram chamados quaisquer opositores da ditadura que viessem a ser levados à rua Tutóia.

Boilesen não apenas doava dinheiro como gostava de visitar o local para assistir às torturas. Chegou a importar uma máquina de choques acionada por um teclado para oferecer especialmente à Oban. O equipamento viria a ser batizado carinhosamente de pianola Boilesen pelos torturadores.

Os resultados foram tão promissores naqueles primeiros meses de funcionamento, a partir da morte do líder da ALN (Ação Libertadora Naiconal) Virgílio Gomes da Silva, em setembro de 1969, que o governo federal optou por oficializar a existência da Oban no ano seguinte, agora sob o nome de DOI-Codi, uma sigla um tanto complexa para um nome extremamente longo: Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna.

Estudos afirmam que o número de funcionários passou de 150 para 400 nesse período. Muita gente envolvida, muita gente cúmplice. Ainda em 1970, o órgão passou a ser comandado pelo major Carlos Alberto Brilhante Ustra. E o financiamento, bem, passou a ser feito por todos os cidadãos de São Paulo, por meio dos tributos normais.

Você sabe onde você está?, ele e seus comparsas costumavam perguntar ao preso recém-chegado, de quem era arrancada a roupa ainda no pátio para os primeiros golpes de cacetete. Aqui é a sucursal do inferno, onde filho chora e mãe não vê.

Porões? Para quê?

Entrei pela primeira vez num dos prédios do antigo DOI-Codi nesta quarta-feira (17). Numa tarde chuvosa, em meio à repercussão da posse de Alexandre de Morais à frente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e diante da notícia da morte do octogenário Major Curió, comandante da operação do Exército que dizimou a Guerrilha do Araguaia em 1973, cerca de 25 pessoas, incluindo servidores públicos de Mogi das Cruzes, historiadores de São Paulo e artistas de Ribeirão Pires, estiveram no local para uma visita monitorada.

A ação tem sido realizada uma vez por mês pelo Núcleo de Preservação da Memória Política, sempre com a presença de pelo menos uma testemunha que experimentou os horrores da tortura naquelas salas. A próxima visita está agendada para o dia 21 de setembro.

Meses atrás, por ocasião de uma audiência judicial que abordou a conveniência de transformar aquele espaço num local de memória, transferindo a responsabilidade por ele da Secretaria Estadual de Segurança Pública para a Secretaria Estadual de Cultura, visitei o 36º Distrito Policial, que ocupa a porção do terreno mais próxima à rua Tutóia e serviu de fachada para a Oban.

Uma delegacia comum, observei, enquanto um ex-preso político me apontava a localização das celas masculinas e femininas e da sala de tortura. Tudo muito às claras, ao nível da rua, com janelas, nenhuma parede mais espessa que o habitual. Nenhum porão? - devo ter perguntado.

Leio sobre o DOI-Codi há mais de vinte anos e até hoje tenho dificuldade em processar a informação de que não havia porão algum no DOI-Codi, nem no Deops, transformado em Memorial da Resistência. A gente cresce associando tortura ao subsolo, ao submundo, às catacumbas, ou pelo menos a uma sala sombria, hermeticamente fechada, com tratamento antirruídos, para que ninguém do lado de fora pudesse decifrar um berro, um choro, um grito. Que nada. Visitar o DOI-Codi é esfregar na nossa própria cara a vergonha do período de exceção e o constrangimento com a certeza da impunidade.

Vamos subir

Desta vez, não entrei na delegacia, mas num dos prédios anexos ao fundo. Na primeira metade dos anos 1970, havia três deles no terreno, um com entrada para a rua Tomás Carvalhal, perpendicular, e outros dois para o pátio externo da rua Tutóia. Um deles, localizado à esquerda de quem olha da calçada para o complexo, era integralmente utilizado para depoimentos e torturas, e não como carceragem.

Subindo-se a escada, atingem-se dois pavimentos muito semelhantes entre si, cada um com uma sala de tortura maior, onde antes havia um pau-de-arara, máquinas de eletrochoque, tanques e mangueiras para afogamento, palmatória.

Vamos subir, dizia o carcereiro nos anos 1970. O sequestrado já sabia que havia chegado a hora da porrada.

Perambulei entre aquelas salas tentando imaginar em qual delas penduraram o corpo do jornalista Vladimir Herzog, em outubro de 1975, para a fotografia fraudada de seu hipotético suicídio. Tentei imaginar o corpo inerte de meu primo Alexandre Vannucchi Leme, jovem de 22 anos torturado até a morte em 1973, arrastado pelo chão da carceragem, e entender como é possível tamanho descaso, tamanha conivência.

Conta-se que as mortes dos militantes mais conhecidos eram comemoradas com festa na sucursal do inferno. Havia prêmios em dinheiro, compartilhados por todos que haviam integrado a equipe de busca e eliminação. Atirava-se para o alto em pátio aberto.

Um dos mais afoitos era o próprio Ustra, mais tarde promovido a coronel. Em 1973, quando o assassinato de Alexandre foi denunciado por Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo, que ainda ofereceu a catedral da Sé para a realização de uma missa em memória do estudante, ouviram-se berros com ofensas impublicáveis ao religioso. Ustra, aliás, chegou a morar com a esposa e as filhas ali mesmo, no DOI-Codi, numa das suítes do anexo da direita, mantido como um alojamento para descanso dos plantonistas.

CSI DOI-Codi

Nesta e nas próximas semanas, uma equipe multidisciplinar está trabalhando no local em busca de vestígios arqueológicos que possam trazer novos elementos à investigação e ao repertório das práticas de repressão ali adotadas. Uma das técnicas a serem utilizadas buscará encontrar traços de sangue no chão ou nas paredes. Conforme a quantidade, pode ser possível o cotejamento com material genético de familiares de mortos e desaparecidos políticos.

Além disso, há o interesse em buscar inscrições que tenham sido feitas pelos presos nas paredes, mesmo nos locais em que sucessivas camadas de tinta tenham sido aplicadas posteriormente. Por fim, o projeto prevê prospecções com georadar e escavações arqueológicas. O arqueólogo nunca sabe o que vai encontrar, diz Cláudia Plens, coordenadora do Laboratório de Estudos Arqueológicos da Unifesp e responsável pelo projeto. A gente vai tentar. É um teste.

Mesmo entre as profissionais que lideram esse trabalho - uma parceria entre Unifesp, Unicamp, USP, UFSC, UPPH e Universidade de Coimbra, todas elas representadas por mulheres -, é baixa a expectativa de encontrar algo muito especial ou extraordinário, como ossadas que tenham sido ocultadas ali, conforme relatado em centros de tortura da Argentina.

Ainda assim, associada a colheita de depoimentos e a pesquisa sobre a arquitetura dos espaços, a pesquisa arqueológica deverá contribuir para ampliar o conhecimento que se tem sobre o mais perverso centro de tortura do país e, acima de tudo, jogar mais uma vez luz sobre esse tema, para difundir e popularizar o conhecimento sobre a truculência da repressão durante os anos de chumbo.

Numa época em que os excessos da tortura e outros crimes contra a humanidade praticados por Ustra e sua turma são alvos recorrentes de negacionismo e desinformação, sempre na mira de um revisionismo abjeto e canalha, e inspiram políticos que pleiteiam vagas no Executivo e no Legislativo, tanto em âmbito federal quanto estadual, toda ação neste sentido será bem-vinda.

Fonte: Camilo Vannuchi/UOL


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