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NÚCLEO MEMÓRIA

Direitos humanos |   Livro desfaz mito e revela ação efetiva do Itamaraty para derrubar Allende

Salvador Allende (1908-1973) em foto sem data; ditadura brasileira atuou de modo consistente para derrubar presidente chileno, revela livro de Roberto Simon - AFP

SÃO PAULO

Terceiro presidente da ditadura militar brasileira, Emílio Garrastazu Médici foi recebido com pompa pelo governo dos EUA em dezembro de 1971.

Durante um evento de gala na Casa Branca, logo após a apresentação de Itzhak Perlman, jovem violinista que se consagraria anos depois, o mandatário americano Richard Nixon ergueu a taça de vinho branco e fez um brinde a Médici: “Devemos trabalhar juntos para um grandioso futuro ao seu povo, ao nosso povo e a todos os povos das Américas”. O brasileiro respondeu com um sorriso.

O jantar precedeu a confabulação, como revela o jornalista e analista internacional Roberto Simon no livro recém-lançado “O Brasil contra a Democracia - A Ditadura, o Golpe no Chile e a Guerra Fria na América do Sul”.

Na sua última manhã em Washington, Médici se reuniu no Salão Oval com Nixon e o general Vernon Walters, um grande conhecedor dos assuntos brasileiros, que atuou como intérprete.

Longe do lirismo de Perlman, percorreram temas áridos da política e da economia da América do Sul até chegar ao Chile, país que, sob o comando do socialista Salvador Allende, preocupava os dois presidentes. Nixon perguntou: “O senhor acha que as Forças Armadas são capazes de derrubá-lo?”.

A resposta do brasileiro aparece em um documento do governo americano ao qual Simon teve acesso. “O presidente Médici disse pensar que [os militares do Chile] eram capazes, completando que o Brasil intercambiava muitos oficiais com os chilenos e deixou claro que o Brasil estava trabalhando para esse fim [um golpe no Chile].”

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Documento reproduz conversa entre Nixon e Médici, no livro ´O Brasil contra a Democracia - A Ditadura, o Golpe no Chile e a Guerra Fria na América do Sul´ - Divulgação

Allende havia sido escolhido pela população chilena em um processo democrático ao longo de setembro e outubro de 1970, assumindo a cadeira antes ocupada por Eduardo Frei, da Democracia Cristã.

 

Em 11 de setembro de 1973, menos de dois anos depois da conversa de Médici e Nixon, a cúpula militar chilena, com o general Augusto Pinochet à frente, deu um golpe, arrancando Allende do poder. Nesse mesmo dia, no Palácio de La Moneda, o líder socialista colocou entre seus joelhos o fuzil AK-47 (presente do amigo Fidel Castro), apontou a arma para o seu queixo e se matou.

Evidentemente a queda de Allende foi resultado, acima de tudo, de um movimento das Forças Armadas do país andino, com apoio de outros setores da sociedade. Mas, como mostra Simon por meio de arquivos (obtidos no Brasil, no Chile e nos EUA) e de dezenas de entrevistas, as ações da diplomacia brasileira para dar fim ao governo socialista foram sempre consistentes —e, muitas vezes, explícitas— ao longo dos 1.001 dias em que Allende esteve no cargo.

“No léxico do regime militar, o país que sempre fora um aliado brasileiro se metamorfoseara na ‘cabeça de ponte do comunismo internacional na América do Sul’”, escreve o autor, ex-colunista da Folha e ex-repórter do jornal O Estado de S. Paulo.

“A ditadura acreditava que, depois de Cuba, havia surgido um novo polo da subversão armada nas Américas.”

A motivação para que o Brasil buscasse obsessivamente a saída de Allende era principalmente geopolítica. As razões econômicas não tinham papel central. O comércio entre os países aumentou naqueles anos e, diferentemente do que aconteceu com os EUA, nenhuma empresa brasileira foi nacionalizada pela Unidade Popular, coalizão que comandava o Chile.

Simon narra em minúcias como Câmara Canto, embaixador brasileiro em Santiago, promovia articulações com os oficiais chilenos —a começar pela Marinha— pela queda de Allende.

Numa operação conduzida por Canto, acompanhada de perto pelo então ministro das Relações Exteriores, Gibson Barbosa, o governo brasileiro convidou para uma visita ao país e uma série de conversas o militar reformado Alberto Labbé, que ensaiava insurreição contra Allende.

Labbé, como logo se constatou, não tinha força suficiente para ameaçar o governo socialista, mas nem por isso deixou de ser festejado pelas autoridades brasileiras em meados de 1972.

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No ano seguinte, quando já estava consumada a derrota de Allende, em meio aos disparos de metralhadora em direção ao La Moneda, Canto dizia a todos que o telefonavam: “Ganhamos”.

Com os socialistas fora do caminho, a adesão de Médici a Pinochet se tornou tão incondicional que o Itamaraty passou a fazer todas as manobras possíveis para dificultar a vida dos exilados brasileiros que corriam perigo em Santiago. O senador tucano José Serra e Marco Aurélio Garcia (1941-2017), assessor especial da Presidência no anos Lula, estavam entre as centenas de brasileiros que tiveram que buscar asilo em embaixadas de outros países.

“O Chile [dos anos Allende] representa o episódio mais nefasto da história da diplomacia brasileira nas últimas décadas. A diplomacia se confundiu totalmente com a repressão”, afirma o autor. “Em vez de oferecer proteção aos brasileiros, o consulado em Santiago era, na prática, um posto avançado de repressão.”

Ao expor esses modus operandi do Itamaraty diante das turbulências políticas no Chile, o jornalista desmonta um dos mitos que se perpetuaram desde então. Os próprios governos militares dos anos seguintes difundiram a versão de que, como Simon escreve, “‘excessos’ cometidos foram culpa de alguns radicais dentro do regime, pessoas que agiam isoladamente”.

O livro mostra que os atos de conspiração anti-Allende e, posteriormente, as iniciativas brasileiras pró-Pinochet obedeciam a uma cadeia de comando. Eram, afinal, política de Estado.

Outro mito ao qual o autor se contrapõe é o de que o país presidido por Médici atuava fortemente no Chile a serviço da potência de Nixon. “O Brasil agia por conta própria. Eram os interesses do governo do país e também da elite do empresariado e da imprensa, que eram profundamente contra o Allende”, ele diz.

“É claro que existia uma afinidade com os EUA, o encontro de Médici com Nixon em Washington demonstra isso. Mas o livro deixa claro que não houve uma operação conjunta dos dois países para derrubar Allende. Eles operaram cada um a seu modo, o Brasil não precisava seguir ordens dos EUA.”

Nem tão perto de Nixon, como se imaginava. E muito mais perto de Pinochet do que se acreditava.

O BRASIL CONTRA A DEMOCRACIA - A DITAD


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