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NÚCLEO MEMÓRIA

Direitos humanos |   EUA sabiam da tortura na ditadura brasileira e poderiam intervir se quisessem

Deputado cassado pela ditadura, Paulo Stuart Wright foi sequestrado em São Paulo em 1973. Pela primeira vez um documento oficial dá pistas sobre seu paradeiro.Acervo Assembleia Legislativa de Santa Catarina

Eduardo Reina

Mais que influenciar o Governo durante o golpe de Estado em 1964 no Brasil e a ditadura, os Estados Unidos acompanhavam todos os detalhes nos porões militares durante os piores anos da repressão nos anos 1960 e 1970. Promoviam intervenções em casos que envolviam seus interesses diretos. Principalmente se o opositor tivesse cidadania norte-americana. É o que revela documento de dezembro de 1973, apontando que o militante da Ação Popular Marxista Leninista (APML) Paulo Stuart Wright, desaparecido desde então, “foi preso no final de setembro em São Paulo e removido para a Cenimar (Centro de Informações da Marinha) no Rio”. É a primeira vez que um documento oficial aponta o possível destino de Stuart Wright.

O documento foi escrito pelo vice-cônsul dos EUA no Rio de Janeiro, Daniel Anton Strasser, destinado ao embaixador norte-americano em Brasília John Crimmins. Revela também preocupação dos brasileiros e dos diplomatas dos Estados Unidos numa possível morte sob tortura de Paulo Stuart Wright dentro do Cenimar no Rio de Janeiro. Stuart Wright havia sido deputado estadual em Santa Catarina, eleito em 1963. Mas foi cassado em 1964, logo após o golpe. Ao perder o mandato foi para o México, exilado, retornando ao Brasil em 1965, onde iniciou militância política de combate ao regime ditatorial, vivendo na clandestinidade. Segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), foi sequestrado em São Paulo no início de setembro de 1973 e levado inicialmente ao DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna), o principal órgão de repressão e inteligência na capital paulista.

Strasser escreveu que durante conversa com o então deputado federal Lysaneas Maciel surgiu o caso de Wright, e todos ficaram preocupados com seu destino. “... [Ele ] foi preso em São Paulo no final de setembro e removido para o Cenimar no Rio”, mostra o documento enviado ao cônsul-geral em Brasília pela embaixada no Rio de Janeiro. Mais ainda, o texto, que foi desclassificado pelo Governo dos Estados Unidos somente em novembro de 2015, mas que ainda mantém trechos sob censura, descreve que o então deputado pergunta se “o Governo dos EUA poderia ‘manifestar interesse’ no caso e talvez ‘salvá-lo de algumas horas de tortura”. “Maciel teve que ele esteja sendo torturado no Rio”, menciona Strasser.

Na sede do Cenimar no Rio atuava o inspetor Solemar de Moura Carneiro, que usava o codinome Dr. Cláudio. Era especializado em interrogatórios de militantes da APML. Paulo teve sua vida monitorada pelos órgãos de informação, de acordo com documentação do Cenimar de 26 de maio de 1972.

O diplomata Strasser prossegue na consulta ao seu superior, e ao mesmo tempo aponta que a embaixada já sabia de tudo que estava acontecendo com Paulo e que seu caso já havia sido discutido internamente na representação dos EUA no Brasil: “Por não ser cidadão americano, tenho dúvidas de que algo possa ser feito. Discuti o caso como ministro Boonstra”. Clarecce A. Boonstra foi cônsul-geral dos EUA no Brasil e chefiava o escritório de assuntos da América do Sul do Governo dos Estados Unidos.

Documento

Documento escrito pelo vice-cônsul dos EUA no Rio de Janeiro, Daniel Anton Strasser, sobre Stuart Wright

Paulo Stuart Wright era filho de dois missionários norte-americanos, nascido no interior de Santa Catarina e irmão do reverendo James Wright, integrante do projeto Brasil: Nunca mais―o mais completo levantamento sobre a repressão política da ditadura instaurada em 1964, que nos anos 1980 denunciou os casos de torturas e desaparecimentos políticos durante a ditadura brasileira.

Durante a procura do irmão, à época, James chegou a citar a história de uma mulher não identificada que relatara ter visto Paulo numa sala do DOI-CODI paulistano em 5 de setembro de 1973. Mas entre os dias 10 e 17 de setembro Paulo fora levado para lugar desconhecido. O chefe do DOI, Carlos Alberto Brilhante Ustra, também teria mostrado o título de eleitor de Paulo a um seminarista da Igreja Metodista, que estava à procura de Paulo no início de setembro.

Todas as informações sobre o paradeiro de Paulo eram incertas ou desconexas. Depoimento de Osvaldo Rocha, militante da APML, registrado pela Comissão da Verdade, aponta que ele e Paulo estavam num trem que partiu da capital paulista para a região do ABC, onde havia células do grupo político. Rocha foi detido e levado ao DOI-CODI, onde reconheceu uma blusa que Paulo usava quando estiveram juntos antes da prisão no trem. Essa peça de roupa estava jogada no chão do DOI-CODI.

O relatório da CNV também cita documento de 21 de dezembro de 1973 da agência central do Serviço Nacional de Informações (SNI), que criou uma versão de passagem de Paulo por Recife onde teria sido morto e cujo corpo fora enterrado junto a outras vítimas da repressão. Versão essa criada para encobrir o desaparecimento de Paulo ou sugerir sua passagem pelo Recife, segundo o documento final da comissão.

Na década de 1970, a família de Paulo contratou o então advogado José Carlos Dias, atual presidente da Comissão Arns, de monitoramento da democracia e dos direitos humanos, para investigar o caso. Dias concluiu que Paulo teria falecido entre outubro e novembro de 1973, em local desconhecido, vítima de tortura por agentes de Estado. Hoje, ao conhecer o documento do Departamento de Estado dos Estados Unidos, o advogado e ex-ministro da Justiça afirma que o texto levanta uma boa hipótese para identificar o paradeiro de Paulo.

“Tinha a informação de que ele estava no DOI-CODI em São Paulo. Pedi ao STM (Superior Tribunal Militar) que o comandante do 2º Exército esclarecesse sobre o paradeiro de Paulo. A resposta foi que ele não se encontrava no DOI-CODI. Que havia sido transferido para o Rio ou Recife. Isso tudo ficou absolutamente sem esclarecimento. Esse documento [da embaixada dos EUA] é uma nova hipótese sobre o que pode ter acontecido”, analisa José Carlos Dias.

Paulo
Paulo Stuart Wright era filho de dois missionários norte-americanos. Nasceu no interior de Santa Catarina.Acervo Assembleia Legislativa de Santa Catarina

O Conselho de Justiça Militar de São Paulo condenou Paulo “à revelia” por “atividades subversivas” e foi incluído em lista de 14 membros do movimento “marxista-leninista Ação Popular”. Uma sobrinha de Paulo, Delora Jan Wright, filha de James, escreveu o livro O coronel tem um segredo, Paulo Wright não está em Cuba. Ela afirmou em depoimento à Justiça que a prisão e desaparecimento aconteceu em São Paulo possivelmente nos dias 2, 3 ou 4 de setembro de 1973, quando ele estava num trem com destino ao município de Mauá.

A dentista Marlene Soccas, com quem Paulo manteve um relacionamento por vários anos, conta que vários presos políticos que passaram pelas dependências do Cenimar no Rio chegaram a ver a foto de Paulo num quadro dentro das dependências da Marinha. A própria Marlene esteve presa no Cenimar, em 1970. “A foto indica que os órgãos de repressão já monitoravam o Paulo muito tempo antes dele desaparecer”, conta Marlene, que conheceu Paulo em maio de 1964, na cidade de Criciúma. A dentista foi presa em abril de 1970, quando retornava de Santa Catarina, para se engajar no movimento operariado. Foi levada para São Paulo onde foi torturada nas dependências do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), um dos principais órgãos de vigilância da ditadura, e da OBAN, a Operação Bandeirantes, uma organização militar-empresarial da repressão. “Quem me torturou foi o delegado Lourival Gaeta”, conta. Quando morava no Rio, esteve presa no Cenimar. O Governo brasileiro mandou lavrar a certidão de óbito de Paulo em 23 de janeiro de 1996, onde a causa da morte aparece como “desconhecida”. Registra a data do falecimento em 1º de setembro de 1973 em local e hora desconhecidos.

O caso da prisão arbitrária de Paulo foi comunicado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 30 de outubro de 1973. Contudo, a falta de informações que deveriam ter sido fornecidas pelo Governo brasileiro levou ao organismo internacional pela interrupção do processo nº 1.789, em maio de 1975.

 


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