18/11/2019
Por Paulo Vannuchi
Alguém já disse que, no Brasil dos últimos 50 ou 60 anos, a poesia foi salva pela música.
As futuras antologias poéticas não poderão deixar fora os nomes de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e muitos outros. Algumas incluirão também Sergio Ricardo, Geraldo Vandré, Sidney Miller, Dolores Duran, Dona Yvonne Lara e Adriana Calcanhoto, pelo menos.
João Cabral seria muito menos conhecido como poeta, se o genial filho de Sergio Buarque, aos 22 anos, não tivesse recriado de modo tão brilhante a saga Morte e Vida Severina, musicando o funeral de um lavrador:
Esta cova em que estás, com palmos medida,
É a conta menor que tiraste em vida.
É de bom tamanho, nem largo, nem fundo,
É a parte que te cabe neste latifúndio.
Não é cova grande, é cova medida,
É a terra que querias ver dividida
Em Quatis, no estado do Rio de Janeiro, semana passada, pela centésima ou milésima vez em terras brasileiras, a violência covarde se repetiu. Desta vez ceifando a vida de um lavrador de 68 anos, conforme noticiou a agência Brasil de Fato. Um militante do MST, conhecido como Seu Tião, foi executado no assentamento Dorothy Stang, cujos moradores vivem em condições vulneráveis devido ao descaso com que o Incra cuida da regularização da posse, reconhecida em 2014.
Seu nome era Sebastião Carvalho, veterano e sobrevivente do legendário garimpo de Serra Pelada. Lutou pela terra em vários estados até deitar raízes em Quatis, cortada pelo rio Paraíba, há sete anos. Sua esposa, Dona Lúcia, dedicava-se à produção ecológica agroalimentar.
Essa truculência persistente, seja ela jagunça ou ruralista, repete como alvo das balas assassinas outra pessoa de maior idade. Em julho, aqui neste mesmo blog da Comissão Arns, foi denunciado o assassinato de Luís Ferreira da Costa, 72 anos, ocorrido na Estrada dos Jequitibás, município paulista de Valinhos. Um cidadão banal, insuflado pelo clima de intolerância que altos mandatários pregam diariamente na democracia que temos, arremeteu sua camionete contra manifestação pacífica dos trabalhadores residentes no acampamento Marielle Vive.
No pequeno município onde foi morto Seu Tião, próximo ao centro siderúrgico de Volta Redonda, o assentamento tinha adotado o nome Dorothy Stang. Celebrava a vida de uma religiosa norte-americana, assassinada, aos 74 anos, em 12 de fevereiro de 2005, em Anapu, localidade paraense cortada pela Transamazônica. Nunca recuou ou pensou em deixar a região diante das reiteradas ameaças contra sua vida, na chamada Terra do Meio. Na verdade, terra sem lei.
Chegou a declarar: Não vou fugir e nem abandonar a luta desses agricultores, que estão desprotegidos no meio da floresta. Eles têm o sagrado direito a uma vida melhor, onde possam produzir com dignidade e sem devastar.
A galeria desses mártires parece não ter fim. Já reúne lideranças populares como Chico Mendes, Margarida Maria Alves, João Canuto e seus filhos, Expedito Ribeiro, Benezinho, Carlos Cabral de Matos, Wilson Pinheiro, Avelino Ribeiro, Tião da Paz, Nativo Natividade, Gringo, Zé Porfírio e Manoel Porfírio, Epaminondas Gomes de Oliveira, José Claudio e Maria do Espírito Santo, Nilce de Souza Magalhães, Aluísio Sampaio e Gilson Maria Tamponi. Advogados como Paulo Fonteles, João Batista e Eugênio Lira; religiosos como Dorothy, padre Josimo, irmã Adelaide Molinaro, padre João Bosco Penido Burnier, padre Ezequiel Ramin e padre Rodolfo Lukenbein. Indígenas como o guarani Marçal Tupã-Y, os guajajara Jorginho e Paulo Paulino, Simão Bororo. Muitos, muitos, muitos outros nomes.
Registros organizados pela Comissão Pastoral da Terra e pelo MST apontam que já chega a 2 mil o número de assassinatos de lideranças ocorridos na área rural brasileira, computados somente os anos pós-redemocratização.
A primeira pergunta que cabe diante da repetição infinita dessas execuções, em pleno regime democrático, é aquela mesma de um conhecido tribuno romano: Até quando, enfim?.
A segunda é saber se o atual discurso de ódio que emana de altas esferas não haverá de agudizar ainda mais a terrível espiral.
O Brasil de hoje é sacudido por um verdadeiro surto de pregações e sentenças clamando pelo fim da impunidade. Mas dessa impunidade que elimina lideranças populares e defensores de direitos humanos ninguém fala. Impunidade boa para certas parcelas da elite mais rica. O assunto não ocupa manchetes nos jornais e revistas. Quase nada nos noticiários de rádio e TV. Só existe nas redes e nos veículos realmente comprometidos com a democracia. Que desde Aristóteles significa governo dos muitos, e desde Lincoln, governo do povo, pelo povo e para o povo.
Paulo Vannuchi é integrante da Comissão Arns, jornalista, foi ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos
Foto: Coletivo de comunicação MST-RJ
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