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NÚCLEO MEMÓRIA

Direitos humanos |   Anistiado no Brasil, gaúcho processado na Itália pode ser o primeiro condenado por crimes da ditadura militar brasileira

Caso julga a participação de ex-agentes no desaparecimento de cidadão ítalo-argentino, em Uruguaiana, nos anos 1980, época de atuação da Operação Condor, rede de colaboração e troca de informações e prisioneiros políticos entre países do Cone Sul

  • Átila Rohrsetzer, que atuou em postos de chefia durante a ditadura brasileira, está sendo processado pela justiça de Roma por desaparecimento do ítalo-argentino Lorenzo Viñas, assassinado depois em solo hermano.
  • Rohrsetzer era diretor da Divisão Central de Informações, do Rio Grande do Sul. 
  • Sentença deve sair até junho deste ano. Se condenado, gaúcho pode ter prisão perpétua decretada. Os outros três gaúchos acusados morreram durante o processo.

Por Janaina Cesar, especial de Veneza

Lorenzo Ismael Viñas Gigli era um jovem ítalo-argentino de 25 anos que morreu sonhando com a democracia. Militante do movimento hermano de esquerda Montoneros, lutou contra a sangrenta ditadura naquele país, perpetrada pelo general Jorge Rafael Videla. Sua vida foi marcada por prisões e exílio, até ele entrar na lista dos mortos e desaparecidos. Estima-se que cerca de 30 mil pessoas tenham sido vítimas do regime na nação platina. O corpo de jovem até hoje não foi encontrado.

A história de Viñas faz parte de processo que tramita na corte romana contra agentes das ditaduras do cone sul que, tutelados pela Operação Condor, praticaram violações dos Direitos Humanos como crimes de assassinato, sequestro, tortura e desaparecimento de 25 cidadãos com descendência italiana. A legislação do país europeu permite que italianos vítimas de crimes cometidos no exterior possam processar seus algozes na Itália.

Viñas foi preso por agentes brasileiros no Rio Grande do Sul e ficou dias detido aqui antes de ser entregue à repressão de seu país e se tornar um desaparecido político. Por conta disso, o gaúcho Átila Rohrsetzer, que atuou em postos de chefia durante a ditadura brasileira, está sendo processado pela justiça de Roma. Outros três gaúchos também foram acusados no caso, mas faleceram durante o processo – dois deles em 2019.

A Condor marcou a época do terror das ditaduras do Cone Sul a partir da segunda metade da década de 1970. Funcionava como uma rede de colaboração, com troca de informações e prisioneiros políticos entre Argentina, Uruguai, Chile, Paraguai, Bolívia e Brasil. As forças de repressão desses países atuavam conjuntamente para debelar organizações políticas de esquerda. As fronteiras eram praticamente inexistentes. Era possível entrar em um país, sequestrar uma pessoa tida como inimiga do regime, levá-la ao país de origem e, na sequência, assassiná-la.

Poltrona número 11

Foi exatamente isso o que aconteceu com Viñas. Por conta da atuação no movimento argentino e das perseguições políticas, ele e a esposa, Cláudia Allegrini, decidiram partir para a Itália. Viñas iria na frente, e os dois se encontrariam no Rio de Janeiro, para, juntos, embarcarem rumo ao país europeu. A fuga ocorreu pouco depois de haverem voltado à Argentina, após quatro anos em exílio no México. O retorno se deu em 1979, atendendo ao chamado dos Montoneros. Parecia ser um ano feliz aquele: além do regresso ao país de origem, a vida dos dois foi marcada pelo nascimento da filha Maria Paula – a pequena era a paixão de Viñas, que ele pouco curtiu. Mas, um ano depois, aquele pai carinhoso e idealista seria uma das tantas vítimas do terrorismo de Estado colocado em prática por meio da atuação da Operação Condor.

O plano organizado pela família para viver o segundo exílio parecia perfeito. Em Buenos Aires, Cláudia foi ao guichê da viação Pluma e comprou uma passagem para 26 de junho com destino ao Rio – deram-lhe a poltrona número 11. Mal sabiam eles que aquele número era dado aos militantes de esquerda que haviam sido delatados aos militares pelos chamados apontadores (militantes que viraram colaboradores do regime) quando viajavam. Assim, era possível identificá-los. Nem a identidade falsa protegeu o argentino – ele viajava com o nome de Néstor Manuel Ayala.

Foi naquele 26 de junho de 1980 que Cláudia viu o marido pela última vez. Seis dias antes dessa fatídica data, havia comemorado o aniversário de Viñas. Um beijo de despedida e o sonho de se encontrarem um mês depois daquele dia são hoje os fragmentos de memória de Cláudia. “Após atravessar a fronteira da Argentina, o ônibus foi parado por agentes brasileiros na pequena cidade de Uruguaiana. Ao entrarem no veículo, foram diretamente à poltrona onde estava Viñas”, disse a viúva. O argentino permaneceu quatro dias preso na Polícia Federal, em Uruguaiana, para depois ser entregue aos agentes de Videla. Foi levado para Paso de los Libres, onde permaneceu na prisão clandestina conhecida como Polaca, para ser transferido ao centro de detenção do Campo de Mayo, dependência do Batalhão de Inteligência 601 do Exército argentino, localizado em Buenos Aires.

Segundo o Ministério Público italiano, na data em que Viñas foi sequestrado, Rohrsetzer era diretor da Divisão Central de Informações, do Rio Grande do Sul. Por meio de carta rogatória enviada pelo Superior Tribunal de Justiça em 2011, Rohrsetzer declarou que não se submete à jurisdição italiana, por entender absurdas as acusações. 

Prisão perpétua

A primeira audiência deste ano estava marcada para 31 de janeiro, às 16h de lá, meio–dia de Brasília. Mas foi adiada para 9 de março, às 9h30. Devem ser ouvidas três testemunhas: uma mora no México, e as outras duas, no Uruguai.

Rohrsetzer corre o risco de pegar prisão perpétua. Se condenado, qualquer que seja a pena, o gaúcho será o único brasileiro sentenciado por crimes cometidos durante a ditadura militar (1964-1985). Nos bastidores, fontes que acompanham o processo dão a entender que possivelmente a I Corte de Assise de Roma, que julga o caso brasileiro, votará pela condenação, como no caso principal – o processo contra o gaúcho é um desdobramento de um julgamento mais abrangente (leia na sequência), iniciado há cerca de 15 anos e que já condenou 24 ex-militares que atuaram nos aparelhos repressivos do Cone Sul.

Caso ocorra a condenação, a defensoria pública italiana (encarregada da defesa do réu brasileiro) poderá recorrer em apelo. Se for mantida em segunda instância e confirmada pela Corte de Cassação – equivalente ao Supremo Tribunal Federal aqui –, a Itália poderá pedir a extradição de Rohrsetzer. O Brasil, no entanto, não extradita cidadãos brasileiros. Em todo caso, existirá uma sentença penal internacional de condenação contra os crimes da ditadura que poderá influenciar uma mudança de rumo na legislação brasileira. Ainda hoje vigora a Lei da Anistia, que anistiou opositores do regime e seus torturadores por crimes cometidos com motivação política durante o período. 

O processo italiano Condor contra os agentes da ditadura brasileira assume uma importância ainda maior nos dias de hoje com a onda revisionista inaugurada pela eleição de Jair Bolsonaro, que insiste em dizer que a ditadura não existiu e exalta um torturador do período como herói nacional.  “Se ocorrer a condenação, será uma reprimenda moral, ética e histórica”, diz Jair Krischke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH). Krischke teve um papel central no processo Condor contra os brasileiros. Foi ele quem indicou os 13 réus ao ex-procurador do caso, Giancarlo Capaldo, que iniciou as investigações. “Meu primeiro depoimento ocorreu em 1999, na embaixada da Itália em Buenos Aires”, lembra. 

Em 2010, o Brasil foi condenado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão da OEA, pela detenção, tortura e desaparecimento forçado de militantes do PCdoB e camponeses do Araguaia. Mas o Supremo Tribunal Federal rechaçou a condenação e reafirmou a vigência plena da Lei de Anistia. É nesse sentido que uma possível condenação italiana pode ter efeitos na legislação brasileira.

Participação comprovada

Segundo Giancarlo Capaldo, responsável pela denúncia, é impensável que os brasileiros não soubessem e que não tivessem controle do que acontecia: “A participação brasileira na rede repressiva sul-americana é clara. O Brasil foi parte operativa do Plano Condor, tendo exercido papel importante na atuação repressiva e punitiva contra os movimentos que se opunham aos regimes militares da América do Sul. Não é possível que as autoridades brasileiras não fossem cúmplices do que estava acontecendo”.

Inicialmente, em 2015, quando a denúncia foi apresentada, os acusados eram quatro, mas três faleceram no andamento do julgamento: João Osvaldo Leivas Job era secretário de Segurança do Rio Grande do Sul e faleceu em 11 de novembro de 2019, Carlos Alberto Ponzi chefiava a Agência do Serviço Nacional de Informações (SNI) em Porto Alegre e morreu em 20 de abril do ano passado, e Marco Aurélio da Silva Reis, delegado de polícia, cobria o cargo de diretor do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) gaúcho e morreu em 2 de junho de 2016. 

Além dos gaúchos, outros nove brasileiros foram denunciados e notificados judicialmente em 2007. Entre eles estão os dois últimos presidentes do período militar, Ernesto Geisel (1974-1979) e João Baptista Figueiredo (1980-1985) – como morreram em 1996 e 1999, respectivamente, a notificação foi ao governo.

A denúncia contra os agentes brasileiros diz que eles “são acusados por terem praticado ações com intenções criminais, tendentes a pôr em perigo a segurança de um número indeterminado de pessoas, até mesmo pelo simples fato de serem suspeitos de militarem no Montoneros ou de serem parentes e amigos de quem militava no movimento. Por terem prendido ilegalmente um número indeterminado de pessoas por suas supostas ligações com a organização política acima mencionada, por tê-los submetidos a tortura para extrair informações e por terem participado da morte de muitos deles, especialmente, dos cidadãos italianos Horácio Domingo Campiglia Pedamonti e Lorenzo Ismael Viñas Gigli.

Horácio Domingo Campiglia foi preso na companhia de Mônica Suzana Pinus de Binstock, no Aeroporto do Galeão, no Rio, em março de 1980. Inicialmente, o processo italiano também apurava o envolvimento brasileiro no caso Campiglia, mas todos os investigados já haviam falecido.

O governo brasileiro, em pelo menos duas ocasiões, reconheceu a participação no desaparecimento de Viñas. Em agosto de 2005, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) reconheceu a responsabilidade do Estado sobre o caso Viñas e indenizou a família pelo desaparecimento forçado do ítalo-argentino. Cláudia confirmou, durante a audiência, que recebeu cerca de US$ 38 mil de indenização porque o governo reconheceu que militares brasileiros atuaram na prisão e na tortura de seu marido durante os dias de detenção no Brasil.

Em dezembro de 2011, o jornal O Estado de S. Paulo trouxe a público uma entrevista do general-de-divisão da reserva Agnaldo Del Nero Augusto, concedida ao jornalista brasileiro Marcelo Godoy, na qual o militar admitia a participação do Brasil na Operação Condor. Del Nero citava como exemplo do envolvimento do governo militar nas prisões de cidadãos estrangeiros, “o caso dos dois italianos”, referindo-se a Viñas e a Campiglia, ambos ítalo-argentinos e militantes dos Montoneros.

Tanto o documento da CEMDP quanto a entrevista de Del Nero estão sendo usadas pelo MP italiano no processo.

Caso brasileiro é parte do processo Condor

As investigações sobre a Operação Condor na Itália duraram cerca de 15 anos e tiveram início após denúncias apresentadas pelos familiares dos italianos desaparecidos na América do Sul. Os autos do processo se estendem por mais de 170 mil páginas, entre depoimentos tomados e documentos recolhidos em arquivos secretos dos países do Cone Sul. Das 146 pessoas indiciadas após as investigações preliminares, apenas 37 viraram réus, incluindo os brasileiros.

O processo relativo aos brasileiros é um desdobramento do grande processo Condor, que condenou em 8 de julho do ano passado, em apelação, 24 ex-militares de ditaduras sul-americanas à prisão perpétua por assassinatos de cidadãos de origem italiana cometidos entre 1973 e 1980. Na primeira instância, cuja sentença é de 17 de janeiro de 2017, somente oito ex-presidentes e militares sul-americanos haviam sido condenados (e 19 absolvidos).

O processo contra os brasileiros corre em separado porque a denúncia contra eles foi apresentada quando o grande processo Condor já estava em fase de andamento e os advogados de defesa (da defensoria pública italiana) dos brasileiros alegaram que as provas e as testemunhas ouvidas até então no processo principal não poderiam ser usadas para julgar os brasileiros. Eles são defendidos por Valentina Perroni. Nas últimas audiências, porém, ela tem sido substituída por Marco Bastoni.

Enquanto o processo principal da Condor foi julgado a toque de caixa e caminha para a decisão final na Corte de Cassação, o processo contra os brasileiros, que teve início em 26 de fevereiro de 2016, ainda se encontra na primeira instância. Problemas burocráticos, como um troca-troca de procuradores, fizeram o caso empacar por quase um ano. O processo iniciou com o procurador Capaldo, que foi substituído pela procuradora Tiziana Cugini, que deixou o posto a Amelio Erminio. Já a Corte, que era presidida por Marcelo Liotta, passou a ser comandada pela juíza Marina Finiti.

Isso sem falar na falta de colaboração do governo argentino. De fato, a corte se viu obrigada a adiar três vezes a audiência marcada para ouvir as testemunhas daquele país. A cada data marcada, uma desculpa era dada pela justiça hermana: ou não haviam entregue as rogatórias (ofícios usados para solicitar testemunhas ou documentos de outros países) às testemunhas ou, quando haviam entregue, não informavam em qual tribunal deveriam ir depor.

A situação ficou constrangedora ao ponto do procurador Erminio dizer, em audiência ocorrida em novembro de 2019, que iria à Argentina pessoalmente para colher os depoimentos caso a audiência de dezembro fosse remarcada novamente. E foi nessa audiência que a corte finalmente ouviu, por meio de videoconferência, o testemunho da viúva Cláudia Allegrini.

Apesar de todos os problemas no decorrer do caso, o julgamento, que parecia fadado ao infinito, está para terminar. A juíza Marina Finiti antecipou que a sentença sairá na primavera deste ano, o que significa, no hemisfério sul, entre maio e junho.

 

Este texto faz parte da edição 10 da revista Parêntese, publicada em 8 de fevereiro de 2020.


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