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NÚCLEO MEMÓRIA

Direitos humanos |   A força do autoritarismo

 

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada em 1948, ocorreu em um bom timing para o Brasil, pois o país acabara de voltar à democracia depois da ditadura do Estado Novo de 1937 a 1945.

Apesar do retorno à democracia, no período de 1946 até o golpe de 1964, a Declaração não tivera nenhuma influência. Havia uma voz ou outra de juristas ou os internacionalistas, mas nem a sociedade nem o Estado brasileiro levaram em conta os preceitos da Declaração.[i] Não havia referência aos direitos humanos, por exemplo, em como a polícia atuava ou em como eram administradas as prisões nos estados.

Nós acordamos para os direitos humanos na ditadura militar, especialmente nos dez últimos anos, entre 1974 e 1985, onde o conhecimento sobre os crimes dos agentes militares cada vez mais se adensara.

Mas estávamos em boa companhia no sistema internacional porque, apesar da criação da Comissão de Direitos Humanos (CDH) das Nações Unidas, em 1946, sob a presidência de Eleanor Roosevelt, depois da redação da Declaração Universal, não houve, nas três primeiras décadas, nenhum monitoramento de direitos humanos. Por que? Pelo temor de que o racismo contra os negros estadunidenses provocasse uma avalanche de queixas e denúncias no âmbito da Comissão.

As denúncias de violações somente começaram a ser investigadas a partir de 1979, quando foi nomeado um relator especial da ONU sobre a ditadura de Pinochet. Quase ao mesmo tempo, foi criado pela CDH um grupo de trabalho sobre o racismo na África do Sul. A partir daí foram criados mandatos de relatores especiais: primeiro, sobre a situação de direitos humanos em países e, depois, os temáticos.

O que acontece no Brasil depois da volta ao governo civil, inicialmente em 1985 e, depois, sob governo constitucional de 1988? O Estado brasileiro vai assumir a gramática dos direitos humanos, sem praticar o denial, a negação das violações. Assim, o ano de 1985 foi, ao mesmo tempo, a volta para o governo civil e o início de uma política de Estado de direitos humanos. A partir de então, independente dos partidos que estivessem no governo, os textos baseados na Declaração, nos pactos internacionais e nas convenções que se seguiram, eram logo subscritos e ratificados pelo Congresso Nacional.

O Brasil foi um dos que primeiros a subscrever a Convenção contra Tortura, quando o presidente José Sarney falou na Assembleia dos Direitos Humanos, em 1985, assim como subscreveu o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que a ditadura não assinara. Esses textos foram em seguida ratificados pelo Congresso Nacional, graças à atuação principalmente dos senadores Severo Gomes, Fernando Henrique Cardoso e Eduardo Suplicy.

Depois, no governo Itamar Franco, foi realizada a primeira assembleia das entidades de direitos humanos no Itamaraty, quando Fernando Henrique Cardoso era Chanceler. Foi algo muito emocionante, pois pela primeira vez ONGs e defensores de direitos humanos pisavam no Ministério das Relações Exteriores.

Sai justamente daí a participação intensa da sociedade civil brasileira na Conferência Mundial de Viena, em 1993 – ONGs brasileiras de afrodescendentes, mulheres, crianças, indígenas, LGBTs, um largo arco de entidades de direitos humanos que se reuniam, durante todos os dias da conferência, com a delegação do governo brasileiro, há pouco saído da ditadura. Vivi aquilo, como um grande momento. A declaração e o Programa que saíram da conferência, em grande parte graças ao embaixador brasileiro Gilberto Sabóia, presidente do comitê de redação, definia a democracia como o sistema político mais capaz de proteger os direitos humanos e afirmando sua indivisibilidade entre direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais.

Uma das prescrições recomendadas pelo Programa de Viena foi a criação de Programas Nacionais de Direitos Humanos. Então, iniciado o governo Fernando Henrique, assumiu-se como tarefa a preparação do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH). O PNDH 1, lançado em 1996, teve como relator o eminente cientista político e ativista de direitos humanos, Paulo de Mesquita Neto, cuja falta lamentamos todo dia. Em 2002, se seguiu o PNDH 2, onde, pela primeira vez, o Estado brasileiro apoiava políticas afirmativas dos direitos da população negra. E depois, no governo Lula, com Paulo Vannuchi como ministro de Direitos Humanos, foi feito o PNDH 3, no qual foram publicados os prefácios dos PNDHs anteriores, denotando a continuidade da política de Estado de direitos humanos.

Todos os governos brasileiros, sem exceção, aprofundaram a política de Estado de direitos humanos até o governo da presidenta Dilma Rousseff, que instalou a Comissão Nacional da Verdade. Com a publicação do seu relatório em 2014, ficou claro que as violações de direitos humanos, as prisões arbitrárias, os sequestros, os desaparecimentos, os assassinatos e as torturas faziam parte da política de Estado da ditadura, na qual o vértice era o general presidente da República. Os principais chefes de tortura, como o coronel Ustra, estavam lotados no gabinete do ministro do Exército.

Desgraçadamente a impunidade para aqueles crimes e violações dos direitos humanos cometidos pelos agentes da ditadura militar foi consagrada, inicialmente, por meio de uma auto-anistia e, depois, em 2010, pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que, de costas para a humanidade, confirmou essa anistia, contrariando as normas do direito internacional que definem a nulidade jurídica de tais auto-anistias.

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E onde nós aterrissamos depois de todo esse percurso? Nós aterrissamos no golpe de estado jurídico-parlamentar do impeachment da presidenta Dilma Rousseff e na instalação de numa plataforma de governo antipopular pelo presidente interino Michel Temer, cuja primeira decisão é muito simbólica: extinguir o ministério dos Direitos Humanos. Se alguém tinha dúvidas sobre a má-fé e os objetivos reais do impeachment, os primeiros dias de governo do presidente interino foram extremamente reveladores. Nesse governo se iniciou o retrocesso em todas as conquistas realizadas na esteira da Constituição de 1988. Para os direitos humanos, é difícil encontrar uma área onde não tenha havido atraso: aumento das mortes entre a população negra, principalmente entre adolescentes e jovens pobres mortos pela polícia; proteção ao meio ambiente; defesa da Amazônia e de suas populações; proteção dos povos indígenas; luta contra a homofobia, o racismo e desigualdades de gênero; direitos trabalhistas; congelamento dos orçamentos em saúde e educação e demais áreas sociais, entre outras.

Logo depois, em 2018, as eleições presidenciais sagraram um governo de extrema direita que, por sua vez, interrompe a política de Estado de direitos humanos. Na transição política da ditadura para a democracia, sabíamos que o fim da ditadura não era o começo da democracia, que o autoritarismo não desaparece com a transição, nem no Estado nem na sociedade. Mas, de qualquer modo, subestimamos a força do autoritarismo na sociedade que reemergiu com a chegada da extrema direita ao poder executivo.

“Desdemocratização” da democracia 

Em consequência da instalação de um governo de extrema direita, o momento no Brasil é crítico. Durante mais de 30 anos houve avanços do Estado de direito e da política de Estado de direitos humanos, permitindo alargar a “democratização da democracia”,[ii] levados em conta os interesses objetivos das classes populares. Gradual e seguramente o governo visou a anular as garantias conquistadas na vertente da Constituição de 1988, passaram a ser postas em cheque na área dos direitos humanos, aprofundando um processo de “desdemocratização” da democracia, destituindo especialmente as classes populares de seus direitos e esvaziando seus espaços de participação política nas decisões de governo.

O programa de destruição da política de Estado de direitos humanos, além de ser entendida como uma conspiração internacional, é fundamentalmente contra as conquistas econômicas das baixas classes médias e mais pobres alcançadas especialmente nos governos Lula e Dilma[iii].

O desmantelamento da promoção, defesa e gozo efetivo dos direitos humanos tende a assumir proporções épicas. Os projetos que compõem a pauta conservadora evidenciam um trabalho gradual e seguro de desmonte das conquistas dos direitos estabelecidos sob a égide da Constituição de 1988. Os alvos desta operação de retrocesso são amplos e diversos: visam aos direitos das crianças e adolescentes, na proposta que reduz a maioridade penal e naquela da redução da idade para o ingresso no mercado de trabalho; flexibilizam a definição de trabalho escravo; buscam revogar o Estatuto do Desarmamento; criam novos obstáculos para a demarcação de terras indígenas; modificam o Estatuto da Família, recusando o reconhecimento das relações homoafetivas; modificam a lei de atendimento às vítimas de violência sexual, dificultando o aborto; e, sobretudo, promovem a restrição e punição a manifestações políticas e sociais e violações de privacidade, encapsuladas na Lei Antiterrorismo.

O Ministério da Justiça, em agosto de 2020, elaborou um dossiê, criminalizando o antifascismo, numa criminosa iniciativa de ressuscitar os execráveis dossiês de espionagem política da ditadura militar. Não é por mero acaso que o governo de extrema-direita construiu o dossiê contra os antifascistas: no fascismo italiano a oposição foi eliminada com leis fascistizantes e, antes de mais nada, com a repressão que abateu sobre o movimento antifascista.[iv] Felizmente, o Supremo Tribunal Federal, numa decisão histórica – de 9 votos a 1, em 21 de agosto de 2020, proibiu o Ministério da Justiça de fazer esses relatórios sobre o que alguns cidadãos pensam e agem, proibindo sua distribuição.

Bolsonaro e a destruição das instituições democráticas

O líder inconteste desse processo de “desdemocratização” da democracia é o presidente da República, Jair Bolsonaro. Desde a campanha eleitoral e durante todo seu governo, Bolsonaro serviu a seus partidários uma dieta de agressão e de racismo. O chefe de governo entendeu que eufemismos não eram mais necessários quando se tratasse de atacar ou humilhar mulheres, negros, quilombolas, indígenas, homossexuais, japoneses, nordestinos fazendo causa comum com os movimentos de extrema direita.[v]

Bolsonaro repetidamente atacou os fundamentos democráticos do Estado no Brasil. Após ser alvo de fortes críticas por sua participação em um ato público em que defendia uma intervenção militar no país confessou: “O pessoal geralmente conspira para chegar ao poder. Eu já estou no poder. Eu já sou o presidente da República”. Completando, em outro momento, afirmou: “Eu sou, realmente, a Constituição“.[vi] Assume, ao fazer tal afirmação,

“que é a lei aquele que faz e infringe a lei como lhe agrada”. Auto intitulando-se representante da “lei e da ordem” ataca sistematicamente e com total impunidade as leis que constitucionalmente deveria defender. .[vii] 

Durante mais de um ano, o governo de extrema direita no Brasil tem realizado com afinco seu programa de destruição das garantias das instituições democráticas. Bolsonaro insufla crises entre os poderes. Baixa atos administrativos para inibir investigações envolvendo a sua família. Participa de manifestações pelo fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. Manipula a opinião pública e até as Forças Armadas propagando a ideia de um apoio[viii] incondicional dos militares como blindagem para os seus desatinos. Enfim, o presidente deixa de governar para se dedicar ensaios golpistas.[ix]

Enquanto o país vive um calvário, em razão da ausência de políticas para enfrentar as consequências da pandemia, os resultados desastrosos de sua abordagem negacionista para o Coronavírus são agora patentes. Brasil é o segundo país no mundo, só ultrapassado pelos EUA, em número de mortes do Covid 19. A característica de Bolsonaro é sua inabilidade fatal para confrontar a realidade, sendo flagrantemente irresponsável: qualifica o Covid 19 como um mero resfriado; lidera protestos contra lockdown; demite dois ministros da saúde e nomeia um general da ativa, paraquedista para o cargo que simplesmente atua como um pau-mandado do chefe de governo, para aplicar seus diktats negacionistas da pandemia

Nenhum ator político eleito no período constitucional depois da constituição de 1988 se pôs como objetivo destruir as políticas públicas, construídas desde a redemocratização em 1985 e especialmente pela Constituição de 1988, visando se tornar um autocrata. Bolsonaro foi claro num jantar na embaixada do Brasil em Washington, em 17 de março de 2020, quando disse: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer. Que eu sirva para que, pelo menos, eu possa ser um ponto de inflexão, já estou muito feliz”.[x]

Bolsonaro assim nos fez adentrar na escalada do autoritarismo de extrema direita presente em vários países do mundo. Não se trata do mesmo autoritarismo da ditadura do Estado Novo ou da ditadura militar de 1964. Com outros líderes autoritários (Andrzej Duda, na Polônia; Viktor Orban, na Hungria; Trump, nos Estados Unidos; e com seus países epígonos como Filipinas e Israel), Bolsonaro compartilha com esses outros governos autoritários de extrema direita o perfil de “xenofóbicos, homofóbicos, paranóicos, autoritários e desdenhosos da democracia liberal. Operacionalmente, eles subvertem instituições independentes – o judiciário, o serviço público, a mídia e as instituições acadêmicas. O grande alvo almejado é deter um poder incontestável.”[xi] A ambição de Bolsonaro parece ser o de criar uma autocracia: um regime no qual o governante está acima da lei ou que a vontade do governante é a lei.

A incompletude da democracia

Pesquisas de opinião têm demonstrado a consolidação do apoio a toda essa pauta, à qual deve ser somada a alta satisfação dos brasileiros com a inação do governo federal em relação à pandemia da Covid-19. Expressiva satisfação com o “e daí?”, que corresponde ao che me ne frego di tutto, mussoliniano, pouco me importa, “porque todos temos” que morrer. Os alvos dessa necropolítica, o largo contingente pobre e em extrema pobreza, são os mesmos que aplaudem este governo de extrema direita e seu auxílio emergencial – e nem percebem que só recebem tal auxílio graças ao Congresso e às oposições.

O discurso do presidente se reflete nas práticas atualmente em voga nas redes sociais que, utilizando-se de argumentos absurdos, indistintamente mistura diferentes problemas e apresenta fatos inverificáveis. Tende também a simplificar a realidade, reduzindo-a a casos particulares, sobre os quais busca focar suas narrativas.

O governo de extrema direita pretendendo ficar firmemente no poder tem necessidade, efetivamente de uma constante mobilização ideológica e propagandística, e tem a necessidade sobretudo, de um inimigo contra o qual os contingentes da nação possam cerrar fileira. Na fase atual, o inimigo parece ainda ser difuso: são as esquerdas; os comunistas; os defensores do meio ambiente; os defensores de direitos humanos; os povos indígenas; os intelectuais; os universitários[xii]. A equação proposta é simples: os patriotas são as forças que apoiam o chefe de governo, os esquerdistas não são patriotas e, não sendo patriotas, são os inimigos do Brasil[xiii]. Ou, como formulado em seu último comício para presidente da República, na Av. Paulista, a uma semana da eleição: “Petralhada, vai tudo vocês para ponta da praia. Vocês não terão mais vez em nossa pátria porque eu vou cortar todas as mordomias de vocês. Vocês não terão mais ONGs para saciar a fome de mortadela.

Será uma limpeza nunca vista na história do Brasil”.[xiv] Fazia assim referência a uma base naval na Restinga de Marambaia (RJ), outrora importante entreposto do tráfico negreiro, onde teriam sido torturados e executados opositores do regime militar.

Como explicar esse apoio tão grande da população brasileira, unindo os mais pobres e carentes à plutocracia branca em torno de uma plataforma que enterra a política de Estado virtuosa de direitos humanos, construída a duras penas no Brasil durante os mais de 30 anos da vigência da Constituição de 1988? Dentre as inúmeras razões, a mais forte é constatarmos que “por seu conteúdo socioeconômico, a democracia absolutamente não se concretizou real e inteiramente, mas continuou formal.”[xv] E poderíamos caracterizar, nesse sentido, que o governo de extrema direita e o largo apoio popular como “cicatrizes de uma democracia que não foi consolidada, que está incompleta”.[xvi]

A meu ver, no Brasil três fatores principais aqui expõem a incompletude da democracia vislumbrada na Constituição de 1988 – o racismo, a desigualdade e a violência ilegal do Estado – compondo, no seu conjunto, um estado de coisas inconstitucional.

O Brasil é um país racista, os governos democráticos, em trinta anos de plena constitucionalidade, não conseguiram debelar, apesar de políticas afirmativas e quotas raciais, o apartheid que prevalece em todos espaços da vida da população negra. Não pode haver democracia consolidada com negras e negros sendo aqueles que são os mais executados nas periferias das metrópoles pelas PMs; os de maior número entre os reclusos; escassamente presentes nos lugares de poder, como o executivo, o legislativo, judiciário, o ministério público, as universidades, altos oficiais das forças armadas e das polícias, apesar de serem a maioria, constituindo atualmente 56% da população brasileira. São permanentemente alvos do racismo na sua vida quotidiana: em relação aos brancos, possuem os piores trabalhos, recebem salários inferiores e sentenças mais pesadas pelos mesmos crimes, configurando um estado de coisas que, além de inconstitucional, é no mínimo torpe e imoral.

O Brasil continua sendo um dos seis países mais desiguais no mundo. Os governos democráticos, apesar de terem retirado milhões da extrema pobreza, não conseguiram efetivamente tornar menos desigual a sociedade brasileira: os 1% mais ricos concentram 28,3% da renda total do país. O Brasil fica somente atrás do Catar, onde a taxa é de 29%. Segundo a Oxfam, os seis mais ricos do Brasil – Lemann (AB Inbev), Safra (Banco Safra), Hermmann Telles (AB Inbev), Sicupira (AB Inbev), Saverin (Facebook) e Ermirio de Moraes (Grupo Votorantim) – concentram juntos, a mesma riqueza que os 100 milhões mais pobres do país, ou seja, a metade da população brasileira (207,7 milhões).

Desde que os Estados nacionais foram constituídos, a violência contra os cidadãos esteve presente. Porque o Estado é uma entidade contraditória que, por um lado, concentra a capacidade de fazer o bem para a população e, por outro, é o detentor da violência com a qual pode oprimir os cidadãos. As declarações universais, tanto a americana, como a francesa propuseram limitar as violações contra os cidadãos, defendendo quem precisa de proteção. A declaração que melhor expressa essa defesa foi a Declaração Universal de 1948, seguida pelos pactos internacionais e convenções que tornaram essa defesa cada vez mais precisa. O Estado de direito que delas emanou não nos deve fazer esquecer que o Estado, antes de mais nada, é uma instância de dominação. [xvii]

O núcleo duro da segurança pública, escrito pela ditadura, subsistiu à constituinte de 1988, contribuindo tanto para o altíssimo nível de letalidade policial, como para a impunidade dos crimes cometidos pelos agentes do Estado durante a ditadura. As polícias militares do Rio de Janeiro e São Paulo são as campeãs mundiais em execuções extrajudiciais. Nenhum país nos bate. Apesar do empenho de vários governos estaduais e do governo federal em estabelecer planos e reformas para a segurança pública, o extermínio de pobres, principalmente adolescentes e jovens negros, não foi eliminado.

Países do Cone Sul que puniram os criminosos das ditaduras têm melhores condições de resistir ao surto autoritário do que aqui, onde o Supremo Tribunal Federal garantiu, em 2010, a impunidade para os crimes cometidos pelo Estado brasileiro durante as ditaduras militares.

Em nosso caso, para agravar ainda mais a fragilidade do Estado sob o ataque das hostes da extrema direita, conjugada à tolerância de uma junta militar informal de 10 ministros militares e um general vice-presidente eleito, persiste, além da incompletude de nossa democracia, a ilusão de que as instituições democráticas estão fortes, quando, ao contrário, se constata que Congresso Nacional, Tribunais Superiores, Ministério Público assistem ao desmonte de seus poderes pelo poder executivo, quase sem resistência.

Processo este que se soma à incapacidade das oposições em se organizarem em frente ampla contra o governo de extrema direita.

Há uma tendência de se afirmar, a título de tranquilizar a consciência, que em toda democracia existe um resíduo de incorrigíveis e de loucos, uma lunatic fringe, uma parcela lunática da população.[xviii] Mas é um profundo equívoco circular usar essa afirmação como forma de consolo diante das ameaças que irrompem no dia a dia, por parte da extrema direita, na sociedade e no governo. Não se deve subestimar o chefe de governo nem os movimentos de extrema direita em razão de seu baixo nível intelectual ou de seu baixo nível de teoria. Isso seria uma prova de total ausência de visão política, levando a crer que “eles estão condenados ao fracasso”. Subestimar o chefe de governo por suas expressões chulas e grosseiras é um erro, pois são parte de um método que possui objetivos muito claros. [xix]

Os brasileiros e as brasileiras que de boa fé atendem ao “mito”, somente terão condições de se descolar da extrema direita se virem possibilidades efetivas de serem integrados à economia, de terem seus laços sociais reparados e de terem debeladas a violência ilegal do Estado, o apartheid da maioria negra brasileira, a desigualdade e a concentração de renda.

Além do combate político através de meios políticos, deve-se enfrentá-lo no seu terreno mais específico. Há necessidade de construir as bases de uma política unitária que deve caracterizar a resistência ao governo de extrema direita[xx] e seu projeto de

“desdemocratização” da democracia. Caso isso não ocorra, por incapacidade das oposições de formarem uma frente, a liderança do atual chefe de governo se tornará cada vez mais virulenta e poderosa.

A larga comunidade de intelectuais, universidades, defensores de direitos humanos, jornalistas, partidos políticos, movimentos em defesa de vítimas de violações de direitos e de ataques por parte do governo, tem grave responsabilidade para impedir a reconstrução, em curso, de um Estado autoritário pelo governo. Nunca é demais lembrar que “A maneira como as coisas evoluirão e a responsabilidade por essa evolução depende, em última instância, de nós mesmos”.[xxi]

Mais do que nunca a atenção sistemática da sociedade civil para a conjuntura presente e para ações articuladas das entidades de defesa de direitos humanos é crucial. É essencial que as entidades de direitos humanos se mantenham num estado de alerta para prevenir e impedir uma escalada do autoritarismo e da violência. É necessário que monitoremos todas as medidas tomadas para atacar a sociedade civil, para restringir as liberdades públicas e enfraquecer o Estado de direito. Pois, afinal, o Estado de direito é o indicador que revela na prática como funciona a ordem constitucional e contribuirá para impedir retrocessos na proteção dos direitos humanos. Uma luta diária que deve emergir, pois permanente deve ser a defesa da democracia, dos direitos e das liberdades.

Diante desta ofensiva contra nossa constitucionalidade e contra direitos arduamente conquistados, entendemos ser necessário defender as exigências e regras da democracia e nos pronunciar sobre estes projetos de legislação, francamente regressivos, que se referem, muitos deles, a temas e áreas de investigação que têm sido aprofundados por nossas pesquisas. Esse desmonte de direitos agride diretamente nossas convicções e valores democráticos. Assim, entendemos dever romper o silêncio para, por meio de um debate público, contribuir para a sustentação e ampliação destes direitos e o aprofundamento de nossa convivência democrática.

*Paulo Sérgio Pinheiro é professor aposentado de ciência política na USP e ex-ministro dos Direitos Humanos.


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