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Golpe civil-militar de 1964: uma breve introdução

 

Por: Luis Fernando de Carvalho Sousa

professor de história.

 

A história do golpe civil-militar no Brasil tem sido alvo de disputas narrativas de todas as espécies. Há a ala anticomunista, que alega que o Brasil foi salvo de uma ditadura comunista; já outros setores negam que houvesse essa ameaça e que, quem foi “golpeada” foi a democracia. Em meio a essa disputa há os fatos históricos que narram o que, de fato, aconteceu em abril de 1964 e que levou o Brasil há vinte anos de um processo cruel e violento.

 

Desde o início da década de 1950, houve um avanço dos movimentos sociais no Brasil e o surgimento de novos atores. Alguns setores, como o campo, que outrora haviam sido esquecidos pelos governos Getúlio Vargas, Dutra e Juscelino, começaram a se mobilizar, dando origem a um importante movimento do período, chamado Ligas Camponesas. Essas Ligas encontraram na liderança do advogado Francisco Julião apoio para suas reivindicações - isso em fins do governo Juscelino Kubistchek.

 

Jânio Quadros venceu as eleições do ano de 1960 tendo uma breve passagem pela presidência da república. Renunciou. Como seu vice João Goulart estava na China na ocasião da renuncia foi associado ao comunismo. Para impedir que Goulart assumisse com plenos poderes o Congresso Nacional alterou o regime do Brasil para o parlamentarismo, que durou dois anos. João Goulart (Jango) governou com essa alteração constitucional, mas o regime voltou a ser presidencialista.

 

 Foi durante o governo de Jango, os estudantes, por meio da UNE, também se mobilizavam e radicalizavam suas propostas de transformação, passando, inclusive, a intervir diretamente no jogo político. No que diz respeito à Igreja Católica (maior religião do país), mudanças significativas começaram a acontecer. Houve, nesse período, diversas posições tomadas pelos seus líderes, que iam desde o ultraconservadorismo às aberturas à esquerda, típicas da Juventude Universitária Católica (JUC). Entretanto, no cenário político, o que marcou o período foram algumas mudanças que ocorreram em relação às forças armadas.

 

A mudança consistiu na formulação de uma nova doutrina elaborada pelos militares com a Guerra Fria e que ganhou contornos mais nítidos após a Revolução Cubana. Havia interesse em conter as influências comunistas, por isso, surgiu a Doutrina da Segurança Nacional, que foi gerada na Escola Superior de Guerra.

 

O governo de João Goulart se desenvolveu com limitações devido ao sistema parlamentarista. Em janeiro de 1963, o sistema presidencialista voltara, e João Goulart assumia o governo como chefe de estado e chefe de governo. Suas medidas, que visavam a reformas nos mais diversos setores da sociedade brasileira, motivaram no ano seguinte um golpe liderado por militares apoiados por políticos conservadores.

 

O que algumas pessoas da classe política e setores da sociedade civil organizada não esperavam era que o mandato de Jango fosse golpeado. Não somente o governo de João Goulart foi golpeado, mas a própria democracia. Pois a política nacional se viu rendida frente aos interesses estrangeiros, que por meio de regimes autoritários repetiram o feito em diversos países latino-americanos.

 

Depois de alguns episódios como a revolta dos marinheiros, mobilizações sociais e discursos inflamados propondo reformas estruturais profundas na sociedade o governo Jango precisaria ser contido. Foi então que setores conservadores do empresariado brasileiro e a ala militar influenciada pelo governo estadunidense empreenderam em conluio o que ficou conhecido como golpe civil-militar. Conforme ressalta Gaspari:

 

O governo de João Goulart se desmanchara. Às quatro da tarde de 1° de abril de 1964, os cinco tanques M-41 do 1° Regimento de Reconhecimento Mecanizado, sob o comando do tenente Freddie Perdigão Pereira, fizeram o percurso emblemático das derrotas, indecisões e vitórias da jornada. A coluna de Perdigão guardava a entrada do parque Guinle, sobre o qual está encarapitado o palácio Laranjeiras. Tivera a soberba missão de proteger o presidente. Jango voara para Brasília, e o tenente vigiava um portão no caminho de um casarão vazio. Convidado a aderir ao levante por um major da ESCEME, Perdigão justificou-se: não o fizera ainda porque sua unidade continuava leal ao governo e também porque temia a reação dos quatro sargentos de seu pelotão. Mais tarde, chegou-se a um acordo. Os sargentos ficaram com um dos tanques e regressaram ao quartel, enquanto Perdigão saiu com os outros quatro, tripulados por cabos (GASPARI, 2002, p.110).

 

De acordo Marco Antônio Villa Jango era um homem pacífico e possuía poucas habilidades políticas. Embora tivesse sido incentivado por algumas pessoas a resistir e lutar pela constitucionalidade de seu mandato Jango preferiu ir para São Borja e da lá rumar para o exílio no Uruguai.

 

 Esse é a tese defendida em: Jango (1945-1964): um perfil (2004).Villa explora as contradições interiores de Jango e também as de seu governo. A obra é uma boa tentativa de desmistificar uma imagem construída de um político preparado e perspicaz. O historiador mostra a inabilidade política e a personalidade volátil daquele que para muitos foi um dos maiores presidentes brasileiros.

 

Villa assim descreve as últimas atitudes de Jango enquanto presidente do Brasil em face a  possibilidade de uma iminente resistência:

 

Preocupado, Jango apressou os preparativos para partir e não atendeu ao apelo da irmã, dona Neusa: “Janguito, não podemos abandonar essa gente assim no mais. Vamos ficar todos e resistir, para o que der e vier”. De nada adiantou o pedido da irmã, pois ele estava decidido a ir embora. Ao encontrar o tenente José Wilson Silva, disse, apontando para o cunhado: “Eu não sou revolucionário, o revolucionário é o Brizola aí. Vocês se acertem com ele”.Desde esse momento até julho de 1976 — cinco meses antes de morrer —, nunca mais conversou com o cunhado (VILLA, 2004, p. 156).

E assim efetivou-se o que passou a ser conhecido como golpe militar de 1964 que, além de ter ofuscado uma geração promissora de artistas, intelectuais e políticos impôs ao Brasil uma subserviência ao modelo desenvolvimentista estadunidense que, em suma, fazia com que o país fosse fornecedor de mão-de-obra barata para o desenvolvimento de interesses imperialistas.

 

Avaliando os fatos

 

Qual foi a dimensão do golpe?

 

O golpe civil-militar ocorrido em terras brasileiras serviu como modelo para os demais países latino-americanos como no Chile, por exemplo. René Dreifuss 1964: a conquista do Estado (1981) demonstra com bastante precisão a engenhosidade do golpe - com tons gramscianos - que se estabeleceu em terras brasileiras[1].

 

Vamos aos fatos. A constituição à época indicava que em caso de vacância da presidência o presidente da Câmara assumiria a cadeira. Élio Gaspari em sua célebre trilogia diz o seguinte:

 

Enquanto o presidente voava para o Rio Grande do Sul, Auro Moura de Andrade, baseado “nos fatos do regimento”, declarou vaga a Presidência da República e organizou uma cerimônia bizarra. No meio da madrugada, acompanhado pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, rumou para o palácio do Planalto. Levava consigo o deputado Ranieri Mazzilli, que, como presidente da Câmara, seria o sucessor de Jango, caso a república ficasse acéfala. (GASPARI, 2002, p.111-112).

 

Alguns pontos:

 

1- O presidente se encontrava no Brasil;

2- A cerimônia foi feita improvisada (às pressas) na madrugada;

3- O STF assentiu à decisão golpista sem remeter-se à constituição.

 

Há uma corrente que afirma ser o golpe um processo que vinha sendo desenvolvido já na década de 1950 e que não se consumou devido ao modelo desenvolvimentista adotado por JK que, em suma, favorecia os interesses do capital. Jânio em seu governo confuso e Jango com suas propostas reformistas preocuparam os setores conservadores brasileiros, que em conluio com militares perpetraram o golpe.

 

No Brasil é comum se tramar golpes com as altas cúpulas. Foi assim na proclamação da República; foi assim na “revolução de 30” e no Estado Novo e não seria diferente em 1964. Havia uma rede de pessoas que, nos bastidores, já disputava o poder. Brigava-se entre os militares para saber quem iria comandar o que I, II e III exército, por exemplo, . Os políticos faziam o loteamento de cargos e assim foi.

 

A situação de João Goulart se agravou depois de um comício com discursos inflamados que prometiam mudança de rumos na política nacional. Alguns setores conservadores insuflados por representantes de interesses escusos fomentaram a saída de Jango. Ele recebeu a notícia. Foi chamado por Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, a resistir. Mas não o fez.

 

Villa atesta o seguinte sobre a cautela dos militares: “Era claro o chamamento da derrubada do governo Goulart por meio de um golpe militar, mas as Forças Armadas evitaram dar o primeiro passo, temerosas de um novo fracasso, como em 1954, 1955 e 1961” (VILLA, 2004, p.145).

 

Villa parece ser simpático à tese de que o golpe já vinha sendo tramado desde a década anterior a sua efetivação. Os interesses do capital estrangeiros aliados ao atraso da burguesia nacional, que nunca se preocupou em desenvolver o mercado interno do país investindo em uma política nacionalista autônoma, assentiram à tomada de decisão por meio da ruptura democrática.

 

Como agiu a elite? Dreifuss nos explica.

 

“A elite orgânica empresarial se fez defensora e porta-voz dos pontos de vista moderados do centro, ampliando as perspectivas elitistas e consumistas das classes médias e fomentando o temor às massas. Revigorava a percepção solipisista das classes médias quanto à realidade social brasileira e as influencias contra o sistema político populista” (DREIFUSS, 1981, p.230).

 

Dreifuss comenta que Glycon de Paiva, um dos fomentadores do golpe defendeu a seguinte forma de ação:

 

Em sua opinião, a ação politica tinha de ser sigilosa. Suas recomendações envolviam a “criação de um caos econômico e político, o fomento à insatisfação e profundo temor do comunismo por patrões e empregados, o bloqueio de esforços da esquerda no Congresso, a organização de demonstrações de massa e comícios e até mesmo atos de terrorismo necessário” (DREIFUSS, 1981, p.230).

 

Como se pode observar foi um golpe meticuloso, inclusive com terror necessário para causar certa sensação de insegurança nacional e colocar a população ao lado de um regime que “estabelecesse a ordem”.

 

Ao contrário do que muitos pensam. O golpe militar não salvou o Brasil do comunismo. O governo Jango poderia ser qualquer outra coisa menos comunista. No máximo se tratava de um governo populista com ênfase reformista. Nada mais do que isso. Villa chega a colocar Jango como uma pessoal inábil pouco afeiçoada aos traquejos políticos. Isso fez com que o mesmo não resistisse ao golpe e migrasse rumo ao exílio para desespero de Leonel Brizola.

 

 

Carlos Alberto Brilhante Ustra em seu polêmico A verdade sufocada (2007) descreve assim a tomada de poder por parte dos militares. “As condições “objetivas e subjetivas” para a tomada do poder, sem nenhuma dúvida, estavam presentes. Bastava somente um fato, político ou não, para que as coisas se precipitassem. Era tudo questão de mais ou menos dia.” (USTRA, 2007, p.68).

 

Óbvio que se tinha condições. Até por que se não as tivessem poderiam ser criadas, como bem demonstrou Dreifuss quando investigou a atuação da burguesia e de setores da elite no engendramento do golpe. Tudo muito bem preparado com argumentos que até os dias de hoje seduzem os menos informados.

 

As origens do golpe datam, na verdade, da crise do populismo e da incapacidade política em lidar com as tais. A medida mais fácil e simples foi abrir a economia e fazer com que fossem abatidos impostos e taxas para investimentos estrangeiros. O que fazer?  A opção foi a mesma de outrora: submeter-se ao imperialismo. O que não se esperava era que o regime recrudesceria de tal maneira e duraria duas décadas. Foi um período bem difícil.

 

Os setores médios e fomentadores de opinião aderiram a ideia de caos e logo a imprensa colocou-se contra Jango. Analisando o período depois de passados vinte anos Ustra reconheceu o apoio, mas criticou a posição tomada à época por parte da imprensa – estamos falando dos anos 1990 quando Ustra redige sua obra – vejamos suas palavras: “Essa imprensa que, em 1964, pedia a renúncia de Jango ou a ação imediata da sociedade brasileira para por fim à desordem, hoje é tomada por estranha amnésia, fruto, certamente, dos profissionais da esquerda, que povoam e dominam suas reações” (USTRA, 2007, p.82).

 

Ustra em seu livro criou um fantasma chamado: “esquerda” com que luta até as últimas páginas jurando fidelidade à constituição e defesa da ordem, da família e dos valores tradicionais. Com essa narrativa foi tecido o golpe militar de 1964 e até os dias de hoje encontra em pessoas sem o mínimo de sensibilidade guarida para ecoar e disseminar mentiras e ocultar fatos.

 

Curiosamente nas páginas finais do livro Ustra faz menção de uma pessoa que em sua visão seria o grande combatente e continuaria a luta contra o comunismo: o então deputado Jair Bolsonaro.

 

Ustra morreu em 2015 e não teve a oportunidade de ver aquele que continuaria o legado dos militares como presidente do Brasil. Em 2016 por acasião da votação do impeachment da presidente Dilma Rousseff Bolsonaro enalteceu a figura de Ustra como “o terror de Dilma Rousseff”. Essas e outras atitudes como: criminalização dos movimentos sociais; depreciação da esquerda; desapreço pelos valores democráticos entre tantas outras coisas deixam a seguinte pergunta: o espectro da ditadura ainda ronda o Brasil?

 

Recomendo alguns livros para melhor conhecimento do assunto:

 

DREIFUSS, René. 1964: a conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 1981.

GASPARI, Élio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Cia das letras, 2002.

GORENDER, Jacob. Combate nas trevas: a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Editora Ática, 1987.

USTRA, Carlos Alberto Brilhante. A verdade sufocada. Brasília: Editora Ser, 2007.

VILLA, Marco Antônio. Jango: um perfil (1945-1964). São Paulo: Edições Globo, 2004.



[1] Pelo termo gramsciano deve se entender a ideia que é trabalhada pelo filósofo italiano, Antônio Gramsci, sobre a figura do intelectual orgânico, que se apresenta como uma espécie de organizador social em prol de uma mudança utilizando-se da produção das ideias sociais juntamente com as condições materiais em que são produzidas. No caso mostrado por Dreifuss trata da aplicação dessa fórmula num sentido inverso, ou seja, em favor de uma ditadura. Como demonstra o autor ao longo da obra.


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